histórias que a História não conta

Caminhada Luiz Gama Imortal

Caminhada Luiz Gama Imortal

O escritor Raul Pompeia recebeu a notícia da morte de Luiz Gama por volta das 15h30 do dia 24 de agosto de 1882, uma quinta-feira. Amigo e admirador do líder abolicionista e republicano, Pompeia conta que saiu de casa desesperado e tomou o bonde do Brás, na zona leste da cidade de São Paulo, onde Gama morava. Sentia-se “esmagado por uma espécie de raiva surda, sufocante, contra esse monstro horrível que habita não sei onde, e que, de vez em quando, estende para fora a garra e leva-nos um ente querido”.  

Sua crônica, publicada na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, é um precioso depoimento, uma narrativa tão minuciosa e emocionada que é como se pudéssemos ouvir a sua voz embargada e ofegante narrando o cortejo desde o momento da saída. No meio da tarde do dia 25, por volta das 16h, “a tampa do caixão caia, cerrando-se sobre o defunto com o ruído de uma boca que mastiga. Dentro de poucos minutos, o povo, aglomerado diante da casa, viu levantar-se o reposteiro negro e estender-se para a rua um longo esquife, coberto de luzentos listrões de ouro. Depois do esquife precipitou-se uma multidão numerosa. Todos de preto. Era o enterro”.

Caminhada Luiz Gama Imortal

É como se as imagens trêmulas e entrecortadas por ele mesmo gravadas com o celular nos permitissem acompanhar o histórico funeral, realizado a pé, num percurso de cinco quilômetros do Brás até o Cemitério da Consolação, atravessando a várzea do Carmo e subindo a colina em cujo topo organizara-se o núcleo urbano da cidade, para depois tomar o Caminho de Pinheiros, hoje chamado Rua da Consolação. Nada comparado, no entanto, aos mais de 170 quilômetros que Luiz Gama percorrera de Santos até Campinas, também a pé, aos 10 anos de idade, depois de vendido – mais tarde ele descobrirá que ilegalmente – pelo próprio pai, em Salvador. Desamparado e faminto, o menino enfrentou cedo a severa topografia da Serra do Cubatão, que se eleva a mais de 1.200 metros acima do mar.

Ao longo de todo o caminho, os homens se revezavam para viver a honra de carregar “aquele glorioso cadáver” pelas alças do caixão. Logo atrás “desfilava uma enorme quantidade de carruagens”, entre elas o coche fúnebre, vazio. Sinal de que a decisão de fazer com Luiz Gama aquela caminhada não foi antecipadamente planejada, mas espontânea, demandada pelo clamor do momento. Pompeia narra com emoção, inclusive, o instante supremo do funeral em que, cerca de três horas depois de ter partido do Brás, o caixão ia ser baixado ao túmulo. Pedindo para que esperassem ainda um minuto, o escritor e médico negro Clímaco Barbosa, companheiro de luta de Luiz Gama, e baiano de Salvador como ele, ergueu a voz para dizer “duas palavras, sem retórica, sem tropos, a respeito do grande homem que ali jazia caído… lembrou aos presentes que aquele fora Luiz Gama…

A multidão chorou”.

Para finalizar, “intimou a multidão a jurar sobre o cadáver, que não se deixaria morrer a ideia pela qual combatera aquele gigante.

A multidão jurou”.

Estava dada a senha para as gerações futuras: continuar a caminhada de Luiz Gama. Não apenas pela abolição e pela República, mas por um país verdadeiramente democrático. Não apenas uma caminhada simbólica, mas a experiência mesma de ter os pés no chão, de ancorar no espaço as ideias, sobretudo naqueles territórios marcados pela presença do homem que se alfabetizou aos 17 anos de idade, provou que era livre, tornou-se jornalista, escritor e advogado, libertou mais de 500 pessoas da escravidão e, além de escrever “o magnífico poema da agonia imperial”, formulou um projeto para o Brasil.

Caminhada Luiz Gama Imortal
Caminhada Luiz Gama Imortal

Quatro décadas e meia se passaram até que se retomasse a caminhada. E isso se deu por meio de uma estratégia habilmente utilizada por Luiz Gama em seu tempo: a Imprensa. Em junho de 1928, quando ele completaria 98 anos de idade, o presidente do Grêmio Carnavalesco Campos Elíseos, Argentino Celso Wanderley, e o escritor e jornalista Lino Guedes selaram uma parceria, respectivamente como proprietário e editor, para lançar, pela “grandeza da imprensa negra do Brasil”, o Progresso, jornal mensal em cujas páginas passaram a circular notícias do cotidiano, do mercado de trabalho, sobre educação, família, comportamento, vida social, questões raciais, mundo religioso, memória da escravidão, ícones afro-diaspóricos, cultura, lazer e a experiência negra pelo mundo, dando suporte à organização de reuniões sociais, sessões solenes, comemorações de efemérides abolicionistas, palestras e (atenção!) romarias cívicas, que hoje chamamos de caminhadas, em diálogo com os dois momentos cruciais da trajetória de Luiz Gama – a subida da Serra do Cubatão, em 1840, e o cortejo de 25 de agosto de 1882.

Tratava-se, porém, pelo que se lê no Progresso, e mesmo pela escolha do mês de seu lançamento, de celebrar muito mais a permanência do exemplo do que o desaparecimento físico do homenageado. Luiz Gama tinha, escreveu Lino Guedes, logo na primeira página da edição inaugural, “a elegância de um príncipe, trajando habitualmente fraque ou sobrecasaca e chapéu alto; tudo de cor de cinza, muito elegante. À tarde descia com uma pontualidade inglesa até o Brás, onde, nessa época residiam os políticos, jornalistas e mais homens de distinção social, a fim de cavaquear com os amigos […]. A sua presença era uma aleluia nas ruas, porque nenhum homem preto o avistava sem vivas demonstrações de incontida alegria. Abraçava a todos, indagando sempre dos momentos de fugitivos, pondo-se como escudo entre eles e a justiça medievalesca do tempo. Foi o ídolo de todos os corações generosos. A história […], na perpetuidade das suas páginas, consagra o nome deste liberto extraordinário, lutador de tempera, em cuja mão tudo se transformava em arma de combate, desde a razão jurídica dos fatos consignados até a despretensão da poesia”.

Caminhada Luiz Gama Imortal

Um ano depois, tendo sempre o Progresso como suporte, era anunciada a Comissão Pró-Herma de Luiz Gama, encarregada de angariar recursos para a confecção e a instalação de um monumento pelo centenário de nascimento do herói, a ser comemorado no dia 21 de junho de 1930. O monumento foi inaugurado no dia 11 de novembro de 1931, quase um ano e meio depois da data estabelecida. Mas isto não significa, alerta o historiador Petrônio Domingues, que o centenário de nascimento de Luiz Gama tenha passado despercebido, “conforme destacou o Correio Paulistano. A Comissão, que tomou para si a incumbência de erguer um monumento ao ‘preto genial’, organizou uma série de atividades comemorativas, que se iniciaram pela missa rezada às oito horas, na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Depois da missa, houve uma ‘romaria’ ao túmulo de Luiz Gama, no cemitério da Consolação.

Além disso, aquele atraso nada significa diante da importância do ato, amplamente registrado, inclusive pela mídia hegemônica da época, e presenciado não só pela população negra da capital e do interior do estado, como também por autoridades municipais e estaduais. Afinal, o pedestal de granito que sustenta a herma de bronze, e onde se lê…

LUIZ GAMA

POR INICIATIVA

DO PROGRESSO

HOMENAGEM

DOS PRETOS DO

BRAZIL

… está fincado no coração das classes dirigentes do Brasil escravocrata, principais adversárias do projeto político de Luiz Gama. O Largo do Arouche, local escolhido pela Comissão Pró-Herma para instalar o monumento, tem esse nome porque a área em que se situa – loteada e transformada no bairro nobre de Vila Buarque no início do século XX – era uma grande chácara de propriedade do Tenente General José Arouche de Toledo Rendon (1756-1834), doutor em Direito pela Universidade de Coimbra e primeiro diretor da Academia de Direito do Largo São Francisco, criada em 1827. Arouche vendeu a chácara para Antonio Pinto do Rego Freitas (1835-1886), advogado formado pela mesma Academia de Direito do Largo São Francisco, que exerceu diversos cargos públicos, entre eles o de juiz de direito suplente da Capital, cargo a partir do qual se tornou opositor, em prejuízo do cumprimento da lei, das causas de liberdade em que atuava o advogado Luiz Gama. Não foi à toa que os juízes de direito viraram personagens de seus poemas, entre eles aquele intitulado Quem sou eu, popularmente conhecido como Bodarrada:

(…)

Não tolero o magistrado,

Que do brio descuidado,

Vende a lei, trai a justiça

— Faz a todos injustiça —

Com rigor deprime o pobre

Presta abrigo ao rico, ao nobre,

E só acha horrendo crime

No mendigo, que deprime.

– N’este dou com dupla força,

Té que a manha perca ou torça.

(…)

Mas não só eles. Todos os segmentos sociais comprometidos ou coniventes com a escravidão e as injustiças brasileiras em geral ganharam tratamento especial da sua verve satírica. Nada nem ninguém lhe escapou:

(…)

Eu bem sei que sou qual Grilo,

De maçante e mau estilo;

E que os homens poderosos

Desta arenga receosos

Hão de chamar-me Tarelo,

Bode, negro, Mongibelo;

Porém eu que não me abalo,

Vou tangendo o meu badalo

Com repique impertinente,

Pondo a trote muita gente.

Se negro sou, ou sou bode

Pouco importa. O que isto pode?

Bodes há de toda a casta,

Pois que a espécie é muito vasta.

Há cinzentos, há rajados,

Baios, pampas e malhados,

Bodes negros, bodes brancos,

E, sejamos todos francos,

Uns plebeus, e outros nobres,

Bodes ricos, bodes pobres,

Bodes sábios, importantes,

E também alguns tratantes…

Aqui, nesta boa terra

Marram todos, tudo berra;

Nobres Condes e Duquesas,

Ricas Damas e Marquesas,

Deputados, senadores,

Gentis-homens, veadores;

Belas Damas emproadas,

De nobreza empantufadas;

Repimpados principotes,

Orgulhosos fidalgotes,

Frades, Bispos, Cardeais,

Fanfarrões imperiais,

Gentes pobres, nobres gentes

Em todos há meus parentes.

Entre a brava militança

Fulge e brilha alta bodança;

Guardas, Cabos, Furriéis,

Brigadeiros, Coronéis,

Destemidos Marechais,

Rutilantes Generais,

Capitães de mar-e-guerra,

— Tudo marra, tudo berra —

(…)

Lino Guedes é um integrante daquela geração de 1930 que legou para a posteridade uma forte evidência de ter incorporado existencialmente o juramento proposto por Clímaco Barbosa na despedida de 25 de agosto de 1882. Nascido na cidade paulista de Socorro, em 1906, cresceu em Campinas, onde iniciou-se no jornalismo profissional, e onde também editou um jornal intitulado O Getulino, trazendo para o universo da Imprensa Negra do século XX o personagem criado por Luiz Gama para assinar a autoria do seu único livro Primeiras trovas burlescas de Getulino, publicado em 1859. Num dos poemas do seu livro Negro preto cor da noite, de 1936, Guedes chegou a transformar a palavra “getulino” numa espécie de nome próprio coletivo, que ao mesmo tempo adjetiva toda uma comunidade, sem deixar de ancorar no espaço as suas ideias:

Oh, negrada distorcida!

que não quer não outra vida

melhor que esta de chalaça,

por entre fumo e cachaça;

Pra você, negrada boa,

que chamam de gente atoa –

alinhavei tudo isto.

O que aqui está escrito

não conseguirá saber

porque ninguém sabe ler…

Isto muito desconsola,

Oh, getulina pachola,

que transforma o velho Piques

na estranha zona dos chics,

dos trucofechas, dos bambas

e dos sarados nos sambas.

Pra você, oh! Negrada,

carro de preso não é nada,

nem assusta a Resistência!

Zé-povinho sem tenência;

toma, gente do barulho,

este livrinho – um entulho

à sua malemolência,

o qual falará da dor

desta infeliz gente negra,

gente aqui da pontinha,

desgraçada gente minha,

a gente do meu amor!

O velho Piques, para quem não conhece a história de São Paulo que a História não conta, é a área da região central da cidade que abrange os atuais Metrô Anhangabaú, Largo da Memória e Terminal Bandeira de ônibus. Região de ocupação negra desde que São Paulo é São Paulo, onde havia leilões de pessoas escravizadas. Muitas delas, em fuga, se embrenhavam na mata às margens do rio Saracura até alcançar o que hoje conhecemos como Sítio Arqueológico Saracura Vai-Vai, e onde também haverá uma nova estação do Metrô. No Piques, enfim, nasce o quilombo Saracura e, depois, o bairro do Bixiga. Ali, ainda hoje, convivem os “bambas e os sarados nos sambas”. 

Novo hiato literário no tempo, desta vez ainda mais longo – cinco décadas e meia até que novas e regulares caminhadas reunissem em torno de Luiz Gama a literatura de autoria negra. Em junho de 1991, um grupo de escritores negros lançou o projeto Rhumor Negro, que incluiu o lançamento de uma antologia de poemas de autoria negra traduzida para o alemão, dois recitais poéticos – hoje chamados de saraus –, uma caminhada do Largo do Arouche ao Cemitério da Consolação e a publicação de um livreto contendo três textos e duas fotos fundamentais: o poema Quem sou eu, vulgo Bodarrada; a carta-testamento escrita por Gama no dia 25 de julho de 1880; e a já citada crônica Última página da vida de um grande homem, de Raul Pompeia. As fotos estão na contracapa do livreto, reproduzida a seguir:  

Rhumor Negro
Rhumor Negro

A inauguração da herma, no dia 22 novembro de 1931, ocorreu em pleno sepultamento da chamada Primeira República, pouco mais de dois meses depois da fundação (16 de setembro) da Frente Negra Brasileira, ali representada pelo seu presidente Arlindo Veiga dos Santos, e que apenas seis anos depois será silenciada pelo Estado Novo. Também estiveram no ato, cada qual contribuindo para que uma multidão de maioria negra ocupasse o Largo do Arouche, fazendo lembrar o histórico cortejo de 1882, os próprios Progresso e o Grêmio Carnavalesco Campos Elíseos, além de todas as instituições e pessoas – e foram muitas – que haviam ajudado a transformar o sonho da herma em realidade.  

O lançamento do Rhumor Negro, por sua vez, aconteceu a meio caminho entre o lançamento do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978 – passando pelo centenário da abolição da escravatura (1988) – e os 300 Anos da Imortalidade de Zumbi dos Palmares, celebrada em 1995. Naquele momento, já haviam sido organizados três encontros nacionais de poetas e ficcionistas negros brasileiros. A antologia anual Cadernos Negros chegava ao seu 14º volume, mesma idade do Festival Comunitário Negro Zumbi (FECONEZU), semeando um movimento literário negro-brasileiro que, já então, atribuía a sua existência ao pioneirismo de autores como Luiz Gama e Lino Guedes, e que mais recentemente vem fazendo novas descobertas, como a da romancista negra Maria Firmina dos Reis, contemporânea de Gama.

Esse rumor – que o dicionário define como “murmúrio produzido por coisas ou pessoas que se deslocam ou embatem; som indistinto e contínuo de muitas vozes” –, ativado pelo humor negro, isto é, satírico e sarcástico, de Luiz Gama, e permanentemente atualizado, a cada ano, por novas contribuições e linguagens, nunca foi interrompido.

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