Episódio 2 – Marcha Noturna pela Democracia Racial
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Marcha Noturna pela Democracia Racial
O Episódio 2 é sobre a Marcha Noturna pela Democracia Racial, ato de protesto que acontece desde 1997, sempre na noite de 12 de maio, simbolizando a não efetivação da abolição da escravatura no Brasil, decretada pela Lei 3.353, de 13 de maio de 1888, apelidada de “Áurea”.
“Houve sol” – escreveu Machado de Assis, no segundo parágrafo da sua coluna A Semana, publicada na edição de 14 de maio de 1893 da Gazeta de Notícias –, “e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente sancionou, e todos saímos à rua.”
Eram 15h30 quando a Lei 3.353, apelidada de Áurea, foi assinada. Havia sim um grande sol, não só na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro – o único dia de “delírio público” que o criador de Memórias póstumas de Brás Cubas se lembra de ter visto –, como também nos milhões de corações ainda escravizados no país; sol que em pouco tempo, no entanto, mergulharia no horizonte, abrindo alas para a escuridão. Tanto assim que a referida coluna começa em tom melancólico, muito diferente da ensolarada lembrança do delírio de cinco anos antes:
“Ontem de manhã, descendo ao jardim, achei a grama, as flores e as folhagens transidas de frio e pingando. Chovera a noite inteira; o chão estava molhado, o céu feio e triste, e o Corcovado de carapuça. Eram seis horas; as fortalezas e os navios começaram a salvar pelo quinto aniversário do Treze de Maio.”
No último parágrafo do texto o narrador afirma que somos um povo triste, para logo em seguida ironizar, de maneira bem machadiana:
“Não, não. O triste sou eu. Provavelmente má digestão. Comi favas, e as favas não se dão comigo. Comerei rosas ou primaveras, e pedir-vos-ei uma estátua e uma festa que dure, pelo menos, dois aniversários. Já é demais para um homem modesto.”
Em que pese a ironia crítica do Bruxo do Cosme Velho, sabemos que aquele delírio se espalhou Brasil e tempo afora, transformando a princesa Isabel, a regente, numa quase santa, e o “Treze de Maio” em símbolo absoluto de liberdade. Nossa experiência de povo originário e diaspórico, usurpado pela colonialidade e pelo racismo, porém, nos ensinou que a noite do dia 12 de maio de 1888 jamais terminou.
Foi por isso que em 1971 um grupo de poetas negro-gaúchos (e não é por acaso que são poetas), criou o 20 de novembro – dia do assassinato de Zumbi dos Palmares, em 1695 – como contranarrativa para as comemorações do 13 de maio.
De Porto Alegre a ideia ganhou repercussão nacional, a partir das escadarias externas do Teatro Municipal de São Paulo, no ato público que em 1978 lançou o MNU – Movimento Negro Unificado. Nesse mesmo ano, no bairro afro-italiano do Bixiga, não muito longe daquelas escadarias, e numa confirmação de que a literatura é mesmo um quilombo incontornável, um grupo de jovens poetas lançou o 1º dos até agora 45 volumes da antologia anual Cadernos Negros. No 3º volume, publicado em 1980, um dos integrantes daquele grupo escreveu:
Em maio
Já não há mais razão para chamar as lembranças
e mostrá-las ao povo
em maio.
Em maio sopram ventos desatados
por mãos de mando, turvam o sentido
do que sonhamos.
Em maio uma tal senhora Liberdade se alvoroça,
e desce às praças das bocas entreabertas
e começa:
“Outrora, nas senzalas, os senhores…”
Mas a Liberdade que desce à praça
nos meados de maio,
pedindo rumores,
É uma senhora esquálida, seca, desvalida
e nada sabe de nossa vida.
A Liberdade que sei é uma menina sem jeito,
vem montada no ombro dos moleques
e se esconde
no peito, em fogo, dos que jamais irão
à praça.
Na praça estão os fracos, os velhos, os decadentes
e seu grito: “bendita Liberdade!”
E ela sorri e se orgulha, de verdade,
do muito que tem feito!
(Oswaldo de Camargo)
Foi um prenúncio do que aconteceria no ano seguinte. Ao abrir 1988, em fevereiro, quando o Governo brasileiro se preparava para comemorar em grande estilo o centenário da assinatura da lei, duas das mais tradicionais escolas de samba cariocas, campeã e vice-campeã dos desfiles daquele ano, jogavam água no chope.
Unidos de Vila Isabel
Kizomba, a festa da raça
Valeu Zumbi
O grito forte dos Palmares
Que correu terras céus e mares
Influenciando a Abolição
Estação Primeira de Mangueira
100 anos de liberdade, realidade ou ilusão
Será…
Que já raiou a liberdade
Ou se foi tudo ilusão
Será…
Que a Lei Áurea tão sonhada
Há tanto tempo assinada
Não foi o fim da escravidão
Hoje dentro da realidade
Onde está a liberdade
Onde está que ninguém viu
Marchas de protesto ganharam o território nacional, transformando o ano do centenário da abolição num gigantesco e ensurdecedor ato de desconstrução do mito da democracia racial, definitivamente confirmado, afinal, em 1995, com o Tricentenário da Imortalidade de Zumbi dos Palmares. Cerca de 30 mil militantes vindos de várias partes do país marcharam sobre a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, para cobrar essa dívida histórica do Estado brasileiro.
Não foi à toa, portanto, que numa certa noite de 1996 a advogada negro-pernambucana Maria da Penha Guimarães acordou sacudida por um sonho: um grupo de homens negros rebelados contra a escravidão, vestidos de preto e iluminando o caminho com tochas nas mãos fugia dentro da noite. Ela compartilhou o sonho entre colegas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e do Instituto do Negro Padre Batista, entidade fundada uma década antes. Um dos integrantes desse instituto, o Padre José Enes de Jesus, acabara de concluir uma pesquisa sobre os lugares que marcam a presença da população negra na cidade de São Paulo. A ideia de organizar uma marcha noturna passou a ganhar novas adesões. Na virada de 12 para 13 de maio de 1997 saía a primeira das até agora 28 edições da Marcha Noturna pela Democracia Racial.
Negro nas ruas na madrugada do 13 de Maio, diz o panfleto distribuído naquela noite – trocar o dia pela madrugada: substituir os discursos pelo silêncio, trajar preto, usar a luz das velas no lugar da confortável luz solar (…).
Com o passar dos anos, e com a necessidade de se criarem estratégias de mobilização, os discursos não só foram retomados como passaram a ser acompanhados de intervenções artístico-musicais. A exigência da cor preta da indumentária também se flexibilizou, tendo em vista inclusive o colorido das culturas de matriz africana apoiadoras da Marcha. O tradicional ponto de encontro e de concentração é a Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, localizada na Rua do Carmo, 202, quase na esquina com a Rua Tabatinguera. Afinal, o Padre Benedito Batista de Jesus Laurindo, mais conhecido como Padre Batista, fundador do Instituto que, com a sua morte, em 1991, foi rebatizado com o seu nome, tinha sido vigário da Catedral da Sé e reitor e capelão da Igreja da Boa Morte, cujas dependências abrigavam o Quilombo Central, como era chamada a sede dos Agentes de Pastoral Negros (APN’s).
Inaugurada em 1810, essa igreja foi construída ao longo de oito anos pelos integrantes da Irmandade dos Homens Pardos de Nossa Senhora da Boa Morte, que desde a sua fundação, quase um século antes (1728), ainda não tinha uma igreja própria. A localização dessa igreja, não por acaso, é próxima do primeiro endereço (Rua Tabatinguera) da forca, e atrás da Igreja da Ordem 3ª do Carmo, no caminho de quem vai para o bairro da Liberdade – para onde a forca foi transferida –, passando pelo antigo Largo de São Gonçalo, atual Praça João Mendes, onde funcionara a Casa da Câmara e Cadeia durante a escravidão.
Depois de atravessar o Largo do Pelourinho, hoje chamado de Sete de Setembro, chegava-se ao Largo da Forca, hoje Praça da Liberdade África Japão, e à capela do antigo Cemitério dos Aflitos. Essa região, então considerada periferia da cidade, abrigava, portanto, os equipamentos de criminalização (câmara e cadeia), punição (pelourinho) e morte (forca e cemitério) reservados à população indígena, negra e pobre em geral, marginalizada e perseguida pelo regime escravista.
Por isso o Largo da Forca, que em 1858 passou a se chamar Praça da Liberdade, cujo nome, por sua vez, ganhou recentemente as palavras Japão (2018) e África (2023), tem sido usado, nos últimos anos, como ponto inicial da Marcha. O próprio itinerário da manifestação, enfim, vai se atualizando conforme se dão as disputas pelo patrimônio cultural da cidade, mas preservando sempre os pontos tradicionais de parada, como é o caso do Largo do Paissandu, onde a militância executa, todos os anos, o seu ritual de encerramento.
Ali está, desde 1906, a igreja da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Seu endereço original era o Largo do Rosário, renomeado em 1905 como Praça Antonio Prado, depois que este, como prefeito de São Paulo, desapropriou os bens da Irmandade e mandou demolir a igreja ali construída havia mais de um século e meio. O processo de higienização, porém, começou ainda em 1870, ano em que o então presidente da província de São Paulo, João Teodoro, mandou demolir o casario da população preta, desapropriando também o cemitério da Irmandade existente no entorno da igreja.
No dia 20 de novembro de 2016, por meio da Secretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial, a Prefeitura inaugurou ali uma estátua de Zumbi dos Palmares. Também no Dia da Consciência Negra, só que em 2020, foi a vez do negro arquiteto Joaquim Pinto de Oliveira Tebas ganhar uma estátua, instalada na Praça Clovis Beviláqua, entre a Igreja da Ordem 3ª do Carmo, cuja fachada de pedra foi feita por ele no final do século XVIII, e a Praça da Sé, tradicional lugar de memória indígena e negra da cidade.
Em 2022, a memória paulistana de outras cinco personalidades negras foi celebrada com estátuas, entre elas Deolinda Madre, popularmente conhecida como Madrinha Eunice, sambista, fundadora, em 1937, da Escola de Samba Lavapés, renomeada como Lavapés Pirata Negro em 2019. Sua estátua fica na Praça da Liberdade África Japão, onde a militância antirracista se concentra na noite suspensa do 12 de maio. Somadas ao busto de Luiz Gama, inaugurado em 1931 no Largo do Arouche, à escultura da Mãe Preta instalada em 1955 ao lado da Igreja do Rosário dos Homens Pretos, e à escultura em memória de Carlos Marighella, colocada na Alameda Casa Branca, no bairro nobre dos Jardins, em 1999, para lembrar o local em que o guerrilheiro foi emboscado e morto pela ditadura militar em 1969, chegamos ao total de 10 monumentos dedicados a pessoas negras em todos os 470 anos de existência da cidade de São Paulo, ao longo dos quais a cidade produziu 390 monumentos.
Depois de passar por todos esses lugares de memória, fazendo paradas de leitura crítica em cada um deles, a Marcha Noturna pela Democracia Racial ritualiza ainda dois pontos estratégicos da cidade antes de chegar ao Largo do Paissandu – a Praça do Patriarca e o Teatro Municipal de São Paulo. Este por razões já explicadas. Aquele por homenagear José Bonifácio de Andrada e Silva, conhecido como o Patriarca da Independência, representando tudo aquilo que não queremos para o Brasil, por pelo menos três motivos:
1 – José Bonifácio era líder do governo provisório instalado em São Paulo no momento em que se deu a execução de Francisco José das Chagas, o Chaguinhas, cabo negro assassinado no Largo da Forca, no dia 20 de setembro de 1821, condenado por liderar uma revolta por igualdade de tratamento entre militares brasileiros e portugueses; o referido governo se negou a atender o clamor popular que, diante do fracasso das tentativas de enforcamento – pois a corda arrebentou três vezes –, pediu clemência, gritou por liberdade
2 – O patriarcado representa o homem branco, cisgênero e heterossexual no centro e no topo da sociedade
3 – A narrativa do grito do Ipiranga, “Independência ou Morte”, em 1822, simboliza o nascimento de uma nação que manteve a escravidão negra por mais seis décadas e meia
Por isso evocamos o lema Liberdade ou Morte!!! da revolução haitiana, considerado o único levante da história em que pessoas negras vitimadas pelo colonialismo e pela escravidão conquistaram o objetivo: libertar o Haiti e seu povo da dominação europeia. A revolta, iniciada em 1791, levou 13 anos para alcançar a sua meta. Houve sol, e grande sol naquele 1º de janeiro de 1804, um dia que jamais deveria terminar.
Veja os demais episódios:
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